O Marco que me marca
São estas casas
De granito e de suor,
É esta Gente
De olhar cheio e tão faminto;
É todo o oiro
Que transborda do sol-pôr,
É o cheiro embriagante
De um limoeiro em flor,
É a malga enegrecida
A escorrer Outono e verde-tinto.
Das fontes já cansadas,
É o grito dos ribeiros
Clamando a voz das chuvas;
É todo o azul de Junho
Lavado em orvalhadas,
Todo este verde
A estremecer de ovelhas esfaimadas,
Este melaço pegajoso
Que me segura a um cacho de uvas.
De esperança e sonhos carregado,
É esta enchada
Que nos treme nas mãos e na memória;
São mil futuros
Esperando o amanhã de um ventre dilatado,
É um povo inteiro
Catando forças num passado,
É o Marco que me marca
A sede de sentir e ser História
Mário Sousa Ribeiro
Viva o Teatro
Mário,
Quarenta e muitos anos de caminho,
Um braçado de sonhos espalhados pelo turbilhão dos dias,
E na boca,
Na boca de palco,
Um sabor intenso a vida.
Soube-me bem esta viagem;
Este mergulhar no mais fundo de mim
Por entre lágrimas e gestos,
Sons e muitas mãos envolta de outras mãos.
Foi bom ouvir o rastejar dos corpos
E conhecê-los pelos cheiros.
É tão bom não ver!...
É tão bom espreitar para dentro das pessoas
E sentir!
Porquê o magenta?
Talvez restos de um qualquer Outubro da minha infância,
Atirado para o fundo da memória,
E ainda a terra cheirar molhada.
Mário Sousa Ribeiro
Salgueiro “Maio” – de Abril
Escalas-te a madrugada até ao Tejo,
Peito cheio
Aberto a um Povo
A esbordar de tão vazio;
Numa mão uma espingarda,
Na outra mão
Somente um beijo,
Que atiras-te a uma varina
Quando nos olhas da manhã nasceu um rio.
Apontaste ao dia
E exigiste a rendição
De quem não queria que nascesse;
E quando as ruas espirraram toda a Esperança,
Ficaste bem de pé
A segurar o Sol,
Para que a Esperança não morresse.
E sem dizer adeus
Foste-te embora,
Por entre um mar de Gente renascida;
Abril chorou mais tarde prostrado no teu leito,
E a vida que entregaste ao nosso sonho,
Traiu-te um dia
Roubou-te muito cedo à nossa vida!
Mário Sousa Ribeiro
Largo da Livração
Cada árvore
Cada pedra
Escorre história,
Cada sombra
Cada canto
Guarda o tempo;
Nas portas e janelas
Espreita incrédula a memória,
E o bafo do passado
Confunde-se nos dias e no vento.
Cada riso
Num rosto de Criança,
Cada Velho
Cada gesto
Tece o destino;
E com as mesmas mãos
Que amassam a fécula da Esperança,
Mata-se a pressa impiedosa
Do badalar do velho sino
Mário Sousa Ribeiro
Os Rios também choram
Num sussurro moribundo de Setembro,
A soluçar de pedra em pedra
A saudade dos velhos moinhos esquecidos,
Onde repousa a Lua a abarrotar de prata,
E as mós enegrecidas já cansadas de esperar,
Com histórias infindáveis de moleiros resguardadas sob o musgo.
Ouvi chorar o Ôdres!...
O resvalar dos cascos dos cavalos nos caminhos sem idade,
E as cantigas com sabor a hortelã
Que saltavam das bocas quentes e carnudas das moças
Com os sacos de farinha na cabeça.
Ouvi chorar o Ôdres!...
A ausência e a solidão,
Penduradas no olhar mortiço daquele gato muito magro
Que vagueia entre as sombras à procura do dono.
Ouvi chorar o Ôdres!...
E eu também chorei…
Mário Sousa Ribeiro
Retrato Atento – Ou a tempo
Refrescas os pés no Douro,
Lavas o olhar no Marão;
O Tâmega é o Tesouro
Que te irriga o Coração.
Escondes um rosto em granito;
E como quem brinda a um Filho
Bebes o Verde bendito.
Nos lagares e desfolhadas;
Nas romarias de Verão
Danças pelas madrugadas.
Solares de histórias remotas;
Ergues-te sempre cais,
Ganhas sangue nas derrotas.
Teces o destino e os dias;
Fazes do orgulho vaidade
Misturas dor e alegrias.
Mário Sousa Ribeiro
Toutosa Ferida
Rasgaram o peito à minha Aldeia!...
Ouvi-lhe os gemidos
Por entre o ruído de motores e de lagartas
Dos monstros sequiosos de verde e de memórias.
Da janela do meu quarto,
Vi esvoaçar bandos de melros e pardais
Aturdidos na neblina húmida e fria daquela manhã de Novembro.
Rasgaram o peito à minha Aldeia!...
E eu chorei encostado ao velho castanheiro,
Com o cigarro esquecido entre os dedos…
Roubaram-me os morangos muito doces que apanhava no Tombio,
Os ninhos a transbordar de ovos azuis esverdeados,
E as cabanas feitas com ramos de pinheiro,
Conquistadas palmo a palmo
Nas batalhas de Índios e Cowboys até ao anoitecer.
Rasgaram o peito à minha Aldeia!...
E no sangue ainda morno sobre o asfalto,
A palavra saudade
Grita a urgência de outro tempo.
Mário Sousa Ribeiro
“ Ameaça Terrorista”, ou Declaração de Amor
Um dia,
Pela calada do sonho e do desejo,
Hei-de tomar de assalto o teu olhar;
Hei-de fazer refém
Essa doçura que te emprestam os crepúsculos de Setembro,
E hei-de espiar a lua cheia
Que compartilha contigo esses sorrisos que eu invejo.
Um dia
Disfarçado de orvalho e amanhecer,
Hei-de acordar-te
Armado com uma rosa rubra em cada mão,
E com o azul esgadanhado pelos primeiros voos dos pardais,
Hei-de explodir em ti
A alegria inteira de seres minha,
De seres tua,
De seres mulher.
Um dia,
Hei-de amarrar os ponteiros de todos os relógios,
E com as réstias de uma brisa
Que morre no velho castanheiro ali em frente,
Hei-de arrancar os calendários
Pregados ao silêncio das paredes
À espera do passado.
Então,
Cercado de mil gestos e palavras cansadas de esperar,
Hei-de render-me de braços levantados
E entregar-me todo eu,
Mas… só a ti!.
Um Sonho ao Preço da Vida
Chegaram embrulhados em noite,
E com botas salpicadas de ira e sangue,
Arrombaram-te o sono.
Arrancaram-te ao calor de dois braços de Mulher,
E como quem calca uma Flor,
Ignoraram um gemido de Criança
Que jorrou de um berço talhado em madeira tosca,
Separado de ti à distancia de um beijo.
Levaram-te algemado de chuva e breu,
E com um frio cortante de grades e paredes nuas,
Congelaram-te todas as lágrimas
Que ficaram para sempre esquecidas no teu peito,
Que morreram contigo
Sem nunca te turvarem o olhar!.
E o mar ali tão perto dos teus lábios!...
Tão grande!...
Tão livre!...
Nem uma réstia de Sol te emprestaram por um minuto…
E quando Abril entrou aos gritos na tua cela,
Só escutou o eco frio das manchas de sangue na parede!
Abril Pão
Amassaste Abril com mãos de Esperança,
Levedaste-o no teu crer
E ele fermentou;
Polvilhaste-o com sorrisos de criança,
A estalar a fé
De quem o esperar não cansa,
Cor d’oiro já maduro
Do trigo que um país ceifou.
E como quem recebe a Mãe
Sentaste a madrugada;
Limpaste-lhe o olhar
De uma Mulher cansada,
Com uma brisa
Enxugaste-lhe uma lágrima gelada,
E ela sorriu por entre um cravo e um beijo.
Proibida a entrada a subnutridos de sensibilidade
Aqui
A utopia está mais perto!,
Aqui
Há um mundo que nasce d’outro mundo;
Aqui
Cada sonho navega em peito aberto,
E cada dia,
Mesmo que seja o mais incerto,
É como um grito
Que nos rebenta cá no fundo.
As lágrimas e os risos são de todos:
Aqui
O medo e a coragem não se escondem,
Aqui
Fermenta-se a alegria numa ansiedade a rodos,
São outros olhos
Que vêm as vitórias e as derrotas de outros modos,
E às mil perguntas
Só outras mil perguntas nos respondem.
Mário Sousa Ribeiro
Zeca
A Utopia em forma de GENTE
Que nos roubem os sonhos pela calada da Noite,
Que nos espanquem o futuro com o gosto covarde de quem esmaga uma flor,
E que nos profanem as entranhas do olhar
Só porque,
Adormecemos de cansaço na soleira da Utopia!
Que nos entupam com o lixo das palavras
As profundezas de onde nos nascem as lágrimas,
E que nos decepem as mãos com que agarramos a esperança.
Mas, a memória,
Só a levarão bem presa à vida,
Porque se agarra a nós com a força serena de um nome:
Zeca Afonso
Mário Sousa Ribeiro